terça-feira, 23 de dezembro de 2008

O Ano Paulino: Paulo e o Natal

1 – Agora que se aproxima a festa do Natal com o seu cortejo de luzes e de músicas, de prendas e cumprimentos, de risos de meninos e encantos de avós, trago para aqui um apontamento sobre o mistério do Natal de Jesus nas cartas e no pensamento de S. Paulo.
Anda-nos na memória e no coração o Natal do Evangelho de S. Mateus e de S. Lucas, ilustrado pelo presépio de S. Francisco de Assis, e enriquecido com as iguarias e o ambiente das famílias portuguesas. É um Natal poético e quente, bem descrito por Ramalho Ortigão. S. Paulo nunca conheceu esse Natal. No seu tempo ainda não se celebrava essa festa, nem estavam escritos os Evangelhos ou outras páginas do Novo Testamento. O texto mais antigo viria a ser a 1ª carta de Paulo aos Tessalonicenses, e nem aí nem em nenhum outro texto Paulo fala de Jesus Menino.
Paulo converteu-se quando já era homem adulto, devido a uma intervenção de Jesus Ressuscitado. Algum tempo depois, foi a Jerusalém para conhecer pessoalmente Pedro e talvez para ouvir da boca dele algo sobre a vida terrena de Jesus. O tema da pregação de Paulo será sempre o acontecimento da Páscoa, o facto que deslumbrou o coração de Paulo e iluminou todas as fases da sua vida, incluindo o martírio, e é também a partir do mistério pascal de Jesus que Paulo fala do mistério da Encarnação.

2 – Paulo fala da Encarnação na carta aos Filipenses (2,6-11) e na Carta aos Gálatas (4,4), apresentando a vinda do Filho de Deus ao mundo como o primeiro «despojamento» da sua glória, sendo o segundo e o maior a morte na cruz e a sepultura. Da Mãe de Jesus nem sequer refere o nome, mas diz somente que o Filho de Deus se humilhou «nascendo de uma mulher e sujeito à lei» de Moisés (Gál. 4,4).
Há um terceiro texto paulino, a carta a Tito (11,13), onde afirma que em Jesus se «manifestou a bondade e a misericórdia de Deus para connosco», texto que a Igreja utiliza no dia de Natal. Já na carta aos Romanos (1,3) e na 2ª a Timóteo (2,8), refere que Jesus é da descendência do rei David, uma afirmação do messianismo de Jesus.
Em Dezembro, os cristãos armam por toda a parte o presépio, mas o acto central da celebração do Natal é a Eucaristia, o mistério pascal, integrando nele o Nascimento.
Os dois aspectos do Natal (o «despojamento» e a sua «bondade») são as duas faces de uma só moeda, e uma arrasta a outra: a bondade é a face mais visível no Menino, a mais sensível, e até as crianças a entendem depressa; a face do despojamento é mais reflectida, supõe alguma percepção da santidade de Deus, e só os adultos a percebem. Na cruz será o contrário: é mais visível a «humilhação», por baixo da qual está a oferta pessoal da vida e o fogo de um amor infinito. Paulo resume tudo na 2ª carta aos Coríntios (8,9): «Jesus fez-se pobre por nosso amor». No presépio e na cruz.

3 – Neste ano de 2008, que é um ano de «abaixamento» social, os adultos devem reflectir na face paulina do Natal. Numa cultura orgulhosa de si própria, como a de hoje, quase achamos normal que Deus se faça o homem. Nos primeiros séculos era o avesso: a hipotética descida de Deus à vida corporal era sentida, tanto na cultura grega (algo displicente em relação ao corpo) como na cultura semita (zelosa da transcendência absoluta do Deus do Sinai), um verdadeiro escândalo.
É este sentimento de «espanto» e «gratidão» diante do facto real de Deus encarnado que Paulo revela nas suas cartas. Deus não é mais o Deus distante e longínquo do Sinai, cujo nome nem sequer se podia pronunciar, mas é o Deus próximo, o «Emmanuel», inconcebível conjugação de «bondade e abaixamento». Paulo propõe aos cristãos esse estilo de vida pascal.
Comecemos pelo percurso real de um bebé e olhemos com olhos de ver. Ele é a expressão da «dependência» total: nove meses de escuridão no seio materno, as fraldas, a higiene diária repetida, a chupeta, a alimentação, os cuidados médicos, o frio, o gatinhar, o soletrar e a aprendizagem gradual das palavras. Só o amor é capaz de segurar a sua carência radical.
Deus sujeito a isto! Só um amor infinito sustém este abaixamento.
Olhemos também o dinamismo do amor conjugal. Apesar do encanto mútuo do homem e da mulher, o seu amor tem de descer dos sonhos de luar aos cacos e aos trapos, às panelas e às contas diárias, às esquinas dos feitios e às surpresas de cada hora. Só a conjugação da humildade e da bondade sustentarão o casal e o sonho de gerar e criar filhos.
Também os outros estados de vida, incluindo clérigos e religiosas, fazem bem em olhar a sua vida sob o ângulo do Natal paulino: viver em comunidade eclesial, viver dignamente na sociedade civil, viver atento às dificuldades dos outros, viver o realismo da fé católica dentro do espaço e do tempo, exige «despojamento», faz doer, e dói tanto mais quanto maior for a sensibilidade da pessoa e a autenticidade da fé.

4 – De harmonia com a sugestão do Papa, interroguemo-nos em silêncio sobre o modo de pôr em prática a mística paulina do Natal.
Sossega-nos a hipótese de celebrar o Natal em espaços aprazíveis sem olhar para os vizinhos envoltos em problemas? Conhecemos os problemas e carências da nossa freguesia? Em nossa casa «sabe-se viver na abundância e na modéstia?»
Seduz-nos o misticismo da religião sem igreja, do catolicismo sem sacramentos nem missa dominical? Nas decisões éticas, basta-nos o simplismo de reduzir a ética ao disposto na lei civil para não enfrentar os olhos vivos da consciência profunda? Tranquiliza-nos a mística de decidir o voto político unicamente por obediência partidária?
Como vai a aceitação do peso do trabalho do dia e em equipa, as exigências da actualização científica de licenciado e de professor, a vigilância da saúde e da doença, da alimentação e do descanso nocturno, o cuidado das relações no interior da família, na Igreja e em sociedade, a vida profissional de gestor ou operário, de professor ou estudante, de governante ou simples cidadão?
Perante a aspereza da vida real, compreende-se a tentação dos «hippis» de fugir para os montes com uma viola às costas ou a dos jovens que se escondem na escuridão da noite e da droga ou o «mundo virtual» da internet onde tudo é fácil e dispensa o estudo e a reflexão pessoal, e até a falsa libertação pela porta errada da eutanásia e do suicídio.
O Natal ajuda a «descer», a viver «encarnado» no tempo e no espaço reais. Isso requer alguma paixão, mas é assim que a vida é verdadeira.


D. Joaquim Gonçalves, Bispo de Vila Real, in “A Voz de Trás-os-Montes”

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